A GOTA D’ÁGUA
É um equívoco tratar como fato isolado a conjuntura crítica que hoje enfrentamos. Refiro-me ao conjunto de imbróglios em que as instituições fundamentais de nosso sistema político se chafurdam incontinentes. Refiro-me à perda aparentemente total de credibilidade do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Refiro-me à sensação de desamparo da população diante de um perigo mortal (não se trata de metáfora: a pandemia da Covid-19, tal como vem sendo tratada, coloca cada um de nós em constante risco de vida). Refiro-me à imprevisibilidade total das ações e omissões dos guardiões da Constituição, da segurança e da sobrevivência física de nosso país, e a suas atitudes zombeteiras diante da vulnerabilidade do povo a que juraram servir.
Os conceitos de crise política, de crise do presidencialismo, ou de crise da democracia representativa, que nem sempre se prestam para entender sua natureza, agora já não servem sequer para descrevê-la. Não se trata de saber se as instituições funcionam ou não, elas são disfuncionais, fazem exatamente o que não deveriam fazer: o judiciário (desculpe se generalizo injustamente) não aplica mal a Lei, reescreve-a ao sabor de como sopram os ventos; o legislativo não apenas se omite do dever de estabelecer a Lei, parece empenhado em passar a batata quente ao primeiro que se dispuser; e o Executivo, não satisfeito em não governar, impede que se governe.
Vou defender aqui duas hipóteses. A primeira é de que se trata de uma crise intermitente, que tem-se reproduzido, pelo menos, desde a década de 1920, levando, em cada caso, a um colapso da normalidade constitucional. Fique claro, desde já, que não se trata de uma crença no eterno retorno: cada crise eclode por diferentes razões, e seu desenlace é ora um golpe, uma revolução, ou um governo que simplesmente se esvanece e precisa ser removido.
A segunda é de que se trata de uma crise do sistema político, e não apenas do presidencialismo, do governo, ou de dimensões específicas da política doméstica, tais como a economia política, a mobilidade urbana, etc. A década de 1920 foi um período de contínuas rebeliões, civis e militares, que desnudaram a disfuncionalidade do pacto federativo, então vigente, e levaram à Revolução de 1930.
Ao fim da 2ª guerra, a aposta getulista numa modernização reacionária fizera, da década de 30, um novo período de rebeliões, ora de esquerda, ora de direita. A isso somou-se o engajamento de seu governo do lado errado da guerra (Roosevelt) contra o regime no qual buscara inspiração (Mussolini), levando ao desmoronamento da Revolução de 30, cujos escombros foram parcialmente herdados pelo regime de 1946.
Seguiu-se um período de crises políticas intermitentes: a derrubada de Getúlio em 1954, a tentativa de golpe para evitar a eleição de Juscelino, as rebeliões da Aeronáutica contra seu governo, a queda de Jânio Quadro, e o golpe militar fracassado para evitar a posse do vice-Presidente João Goulart. Apesar do golpe constitucional/congressual de adoção de um “parlamentarismo”, que limitava os poderes de Jango – logo revertido ao presidencialismo puro – tratava-se de uma intermitência de crises essencialmente políticas, em que o sistema político e seus fundamentos, democracia representativa, separação de poderes, voto popular universal direto, governo federativo, estado de direito sacramentado na Constituição, bem ou mal sobreviveram. Até 1964.
Com o sistema político desmoronando, devido à disfuncionalidade das relações entre o Executivo e o Congresso e ao tratamento ambivalente dado aos problemas sociais, o golpe cívico-militar de 64 demoliu, por meio de um par de decisões, o que restava do sistema político. Em seu lugar, criou-se um novo sistema, conhecido na historiografia como regime burocrático-militar, o que significa que os tecnocratas governam, o alto-comando militar mantém o poder, e a classe política faz o que lhe é dado fazer pelo militares – ou simplesmente fica quieta.
No novo regime político, os demais poderes ficaram subordinados ao alto-comando militar, a Constituição foi submetida a decisões unilaterais, e o estado de direito, suspenso; a democracia representativa foi limitada em todos os níveis de governo, e a liberdade de opinião e de manifestação estreitamente limitada.
A hipótese que estou defendendo é de que a essência da mudança de regime em 1964, diferente das crises políticas que afetam apenas parte do sistema político, é uma ruptura de tal ordem que resulta em mudança do sistema político como um todo, característica que esse tipo de crise compartilha com a Revolução de 30 e com sua queda em 1946. Entretanto, enquanto as disfuncionalidades do regime de 30 foram-se manifestando no final da década e levaram à sua queda na década seguinte, o regime burocrático-militar, desde o início, não teve legitimidade suficiente para abolir o voto popular, e restringiu-se a limitar seu alcance.
Ao longo dos anos, o regime foi fazendo experimentos para limitar mais ou menos o alcance do voto, interferir mais ou menos nos mandatos oriundos do voto popular. Chegou a criar uma fórmula feita para garantir, na ponta do lápis, que o “candidato” à presidência indicado (informalmente) pelo alto-comando, seria necessariamente referendado pelo Colégio Eleitoral, o qual, apesar de todas as suas limitações, ecoava a vontade popular. Em poucas palavras, o candidato presidencial ungido pelo alto-comando, que representava uma coalizão burocrático-militar-empresarial, sequer chegou ao Colégio Eleitoral para ser referendado. Antes foi barrado, na Convenção do partido do governo, por um populista de direita com amplo apoio entre a classe política governista e setores empresariais – Paulo Maluf – cuja escolha, por sua vez, provocou uma dissidência na bancada do governo, suficiente para dar maioria ao candidato da oposição.
É escusado dizer que a eleição de um presidente divergente da escolha do alto-comando, a convocação de uma Assembleia Constituinte, a adoção de um programa de “Remoção do Entulho Autoritário”, viraram o sistema político vigente de pernas para o ar. O mesmo não sucedeu, entretanto, em decorrência do impeachment de Fernando Collor e Dilma Rousseff, nem quando das tentativas fracassadas de derrubar Temer – naquilo que, para todos os fins e efeitos práticos, foi também um governo levado ao colapso.
O sistema político da Constituição de 1988 tem-se mostrado propenso às crises políticas, que venho descrevendo como uma crise intermitente, isto é, a mesma crise, protagonizada seja por presidentes aventureiros, ou com baixa popularidade, ou sem legitimidade, que se reproduz com pequenos intervalos de tentativas de estabilização.
O que temos no governo Bolsonaro é outra coisa. Como disse acima, o sistema político está desmoronando graças à imprevisibilidade e a progressiva perda de legitimidade das ações e omissões dos guardiões da Constituição, da segurança e da sobrevivência física de nosso país. Um copo cheio de mágoa à espera da gota que transbordará.