BOLSONARO FICA DE MAL

MAS A CHINA NÃO BRINCA EM SERVIÇO

Os ataques concertados entre Bolsonaro e Paulo Guedes contra a China foram deliberados. Julgando por seus efeitos, e não por suas intenções (que não são observáveis): tais ataques afetam imediatamente a disponibilidade da CoronaVac o quê, por sua vez, afeta a credibilidade do Butantan, daí à credibilidade da farmacologia chinesa e, com isso, lançam um desafio ao governo chinês. Não podem, entretanto, obrigar os chineses a reagirem segundo os desejos do (des)governo Bolsonaro.

O leque de reações possíveis do governo chinês, a desafios lançados por outros poderes, é muito amplo, podendo ir da simples desconsideração do desafio, a pesadas retaliações e ameaças militares. Mas, a meu juízo, não o obriga a morder a isca.

Qualquer pesquisador que acompanhe regularmente as relações entre Brasil e China ficaria muito surpreso se esse nosso mais importante parceiro comercial fizesse mais do que humilhar o nosso governo. Ainda menos que retaliasse, bloqueando nossa importação de fármacos ou nossas exportações agrícolas. Atrevo-me a dizer que isso não vai acontecer.

Enquanto o risco de indisponibilidade dos insumos chineses afeta imediatamente a credibilidade do Butantan para cumprir seus compromissos, a reação do governo chinês ao suposto desafio de Bolsonaro depende apenas da escolha do governo chinês. Entretanto, o efeito sobre a credibilidade do Butantan afeta diretamente a imagem da farmacologia chinesa e, particularmente, a maneira como a comunidade internacional avalia o respeito de Xi Jinping a compromissos comerciais. Não esqueçamos que a República Popular Chinesa está empenhada em consolidar seu soft power, especialmente no que diz respeito ao que tem sido chamado de geopolítica da vacina. Ser visto pela comunidade internacional – seus parceiros comerciais – como um país que descumpre seus compromissos é tudo de que a China não precisa.

Por isso, é razoável supor que os chineses não têm interesse em inviabilizar a produção de CoronaVac pelo Butantan, precisam apenas de um bom pretexto para suspender a retaliação hora em curso, sem tampouco perder a face. Os chineses precisam tomar conhecimento de que esse tipo de retaliação – opor obstáculos à entrega dos insumos – embora geralmente eficaz, é precisamente o que Bolsonaro espera, reforça sua relação com seus mais fiéis seguidores. E mais, ajuda a mitigar a queda persistente de sua aprovação e, consequentemente, aumenta sua chance de chegar ao segundo turno das eleições presidenciais de 2022, pois além de agir com sua rudeza característica, desacredita futuros competidores que geralmente se inclinam a encarar a China como parceiro comercial indispensável.

Esse papel esclarecedor não pode ser esperado do Itamaraty nem dos setores mais razoáveis do atual governo. Caberia, ao contrário, à sociedade civil e a setores da classe política não comprometidos com o bolsonarismo. Mas seria necessário uma abordagem de peito aberto com o governo chinês, sem punhos de renda. Uma abordagem obsequiosa e de apelo aos sentimentos de fraternidade não levaria a lugar nenhum.

ENTRE MANDATÁRIO DOS BRASILEIROS E PORTA-VOZ DOS MILITARES, SON COEUR BALANCE

DEU NO ESTADÃO:

O general Mourão, sucessor imediato do Presidente da República, é hoje o principal ponto de sustentação de Bolsonaro. Pretextos não faltam para encerrar legalmente o mandato do chefe do Executivo. A classe política, em cujas mãos está o poder constitucional para fazê-lo, nada decidirá enquanto não souber qual dos discordantes perfis que o vice-Presidente ostenta, herdaria o poder presidencial.

As últimas manifestações do general, a partir de 31 de março, data que os nostálgicos da ditadura preferem adotar, para eternizar a memória do golpe militar de 1964, retratam Mourão como esteio das Forças Armadas. Em sua manifestação naquela data – em ambiente pleno de tensão, provocada pela verdadeira humilhação imposta por Bolsonaro aos comandantes das três forças – o general comemorou a grande dádiva civilizatória e democrática do golpe militar aos brasileiros.

Dias depois – o que permite supor que os dois gestos se completam – publica no Estado (03/04) um artigo laudatório sobre a superioridade da “competência logística e organizacional” dos militares sobre o restante da administração pública. E vai além, promove um claro amálgama entre o governo militarizado de Bolsonaro e algo mais que – segundo ele – “a sociedade brasileira espera de seus militares”: a primeira missão seria o envolvimento da farda com as escolhas feitas, segundo ele, nas eleições de 2018: “condenação da corrupção (…) retomada do desenvolvimento e (…) combate à violência”.

Seria um alívio, pensar que os militares idealizados pelo general assumiriam, como missão civil, colaborar na gestão de um governo que nada tem a ver com o atual. Porque nenhum governo anterior manifestou tão abertamente a falta de compromisso com o combate à corrupção e à violência e com a retomada do desenvolvimento.

De que país, de que planeta, Mourão está falando? Talvez tenha sido o “regime instalado em 1964 que fortaleceu a representação política pela legislação eleitoral, que deu coerência à União e afastou os militares da política”. Da ditadura oriunda do golpe de 64 é que não se trata.

Brevemente, apenas para não distorcer, em tão poucas palavras, tanta História, as iniciativas militares no sistema político foram notáveis: extinguiram os partido políticos existentes, criaram dois partidos por decreto. Não satisfeitos, criaram três legendas (micropartidos) dentro dos partidos que eles mesmos haviam criado e mudaram as regras para dividir a oposição, fragmentando o sistema partidário. Quanto à federação e à coerência da União, transformaram, com um par de canetadas, quatro Territórios dependentes da União em Estados igualmente dependentes da União, e mais dois Estados no Centro-Oeste. Resultado: nada menos do que dezoito senadores a mais, 20% do Senado.

Para afastar-se da política os militares não contaram com o regime, mas com sua própria percepção de quanto a Instituição pagou por envolver-se na competição pelo poder, assumindo os riscos de corrupção e a perda da confiança popular. Quanto ao “regime instalado em 1964”, este levou 21 anos para entregar o poder a quem e direito.

Longe está o perfil bonachão, objetivo e empenhado em políticas públicas. Longe também o perfil conciliador, que estende a mão para o diálogo e se apoia em intelectuais. O mesmo se pode dizer do perfil consistente e hábil que diverge publicamente do Presidente, sem crítica nem confrontação. A opinião pública, especialmente a chamada classe política, tem ouvidos acurados, para ouvir a voz do povo (não necessariamente para atendê-lo), e olhos ainda mais bem treinados, para observar a conduta dos poderosos. Quem seria eventualmente chamado a suceder a Bolsonaro, o vice-Presidente moderado ou o general incendiário do tempo do Clube militar?

Levemos em conta que, dada a antecipação da campanha de 2022, todos estamos aflitos, antes da hora, na expectativa do resultado das próximas eleições. Mas não o Centrão, para o qual não é relevante saber quem será eleito, pois quem quer que seja precisará comer na mão dessa minoria de veto sem compromisso com a nação. Além disso sem compromisso com a estabilidade do governo, ou com a solvência do Tesouro.

Do ponto de vista do Centrão, essa minoria que, hoje, controla o Congresso, o custo de esperar 2022, seria menor do que o de encerrar, às escuras, o mandato de Bolsonaro. Mas, para Mourão, a continuidade do atual presidente no Planalto até 2022 significaria o encerramento de sua carreira política.

Para manter-se como peça relevante no cenário nacional, Mourão não precisaria de uma grande estratégia. Bastaria deixar claro que um eventual governo seu não seria continuidade do governo Bolsonaro. Tudo o que teria a perder seria o que já não tem, o protagonismo que caberia ao seu cargo, o apoio político e financeiro para enfrentar os problemas da Amazônia ou a lealdade do presidente… Muito pouco, portanto.

Quanto ao País, não há dúvidas de que sua sobrevivência como Nação não resistirá à deterioração crescente do desgoverno de Bolsonaro.

Leia a seguir a crônica do mal da Nau dos Insensatos e de sua única cura, a coalizão programática.

LULA E A NAU DOS INSENSATOS

A CURA PELA COALIZÃO PROGRAMÁTICA

A insatisfação generalizada com os governos na época da Renascença foi representada na imagem da Nau dos Insensatos, embarcação sem rumo, carregada de tripulação e passageiros com diversas formas de loucura. Cidades e Naus compartilhavam a falta de rumo.

No Brasil de hoje, os passageiros são pessoas como a imensa maioria do povo, enquanto a insensatez se encarna no piloto e na tripulação, navegando sem rumo. Neste contexto, a anulação das sentenças do ex-presidente Lula pelo STF provocou um verdadeiro tsunami no cenário político do País.

Melhor seria se a falta de rumo do atual governo fosse uma exceção. Não é. O governo Dilma Rousseff perdeu o rumo ao longo do primeiro mandato, e já começou o segundo totalmente descontrolado. Tampouco foi exceção o governo Temer, muito bem sucedido no início, graças a um projeto de reformas que alcançou amplo consenso e foi, em sua maior parte, convertido em lei. Entretanto, diante de denúncias apresentadas à Câmara dos Deputados, empregou todos os recursos do Executivo para salvaguardar seu mandato. Com isto, seu governo perdeu o rumo.

Assim, as três últimas presidências – Dilma, Temer e Bolsonaro – compartilham algo com a nau dos insensatos: a falta de rumo. Não se trata de maldição divina ou força da natureza, e sim, de uma deficiência do sistema político. Pois os três governos que os precederam, Itamar, FHC e Lula, foram bem sucedidos em manter o mandato.

Nestes 36 anos posteriores à Constituição de 1988, o Brasil foi governado por oito presidentes. Três dentre eles mantiveram uma maioria estável inicial, graças à prévia criação de uma coalizão programática que deu credibilidade à expectativa de cumprimento de seu programa. Foram eles Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula.

O sucesso do ex-presidente Lula em 2020, garantindo de antemão uma maioria parlamentar, é atribuído à Carta ao Povo Brasileiro. Trata-se de um manifesto equilibrado, que endossava críticas ao regime vigente, compatíveis com as principais bandeiras da esquerda, e assumia um compromisso de apaziguamento com lideranças conservadoras e com o empresariado.

O sucesso dessa combinação ambivalente deveu-se à persona de Lula, por ser, para uns, capaz de conter os arroubos revolucionários da esquerda e, para outros, por ser considerado incapaz de trair a revolução.

Algo no presidencialismo brasileiro propicia as condições que conduzem os governos à beira do abismo. Apenas a experiência, o acaso e a habilidade de alguns, permitem lutar pela estabilidade e a sobrevivência de seu governo.

O choque produzido pela anulação de todas as sentenças lavradas contra o ex-presidente Lula, decidida pelo ministro Edson Fachin e confirmada por seus pares, embaralhou todas as expectativas em diversas dimensões da vida nacional – jurídica, política e eleitoral. Do ponto de vista jurídico, o ato do ministro é uma demonstração inequívoca do ativismo judicial e da crescente insegurança jurídica em nosso País. Do ponto de vista eleitoral, cria condições para uma repetição do clima polarizado e radicalizado de 2018.

Do ponto de vista político, teremos um Lula já sem o trunfo da Carta ao Povo Brasileiro e sob imensa pressão para antecipar a campanha de 2022. Com isto, esvazia ainda mais, a gestão atual, já sem rumo. Com isto, o povo brasileiro enfrentaria uma escolha insensata entre candidaturas sem maioria parlamentar, e sem planos de gestão.

Se queremos manter-nos sensatos, evitemos um destino de candidatos em excesso com escassez de programa.

FACE À IRA DO POVO E AO DESPREZO DOS GRANDES

BOLSONARO, ATÉ QUANDO?

As condições para o desfecho inglório do governo Bolsonaro estão dadas: a ira do povo e o desprezo da elite. Quando os tempo amadurecerem, será fácil escolher um pretexto.

Desde a transição entre o governo Temer e o presidente eleito Bolsonaro, venho dizendo que a probabilidade deste último concluir seu mandato era escassa. De lá para cá, agravaram-se todas as condições adversas que sustentam essa hipótese.

Bolsonaro nunca contou com maioria na sociedade e no sistema político. Tampouco se mostrou empenhado em expandir essa minoria. Isolou-se dos demais poderes, que tratou com desdém e hostilidade. Propôs um pacto com o Supremo e o Congresso, que não quiseram ou não puderam submeter-se a seus caprichos. A nova versão de pacto, proposta dias atrás, parece uma nova tentativa de terceirizar o ônus de governar, diante do fracasso de comprar o Congresso.

Uma vez que falhou a confrontação permanente com o Parlamento, Bolsonaro passou a delegar, para ao grupo de militares palacianos, a relação do governo com o Congresso. A tentativa falhou e, não se dispondo a negociar com o Congresso, Bolsonaro tentou comprar o chamado “Centrão”.

O Centrão é uma coalizão de veto, que pode compor a maioria, tanto para aprovar uma pauta, como para derrubar outra. Mas não tem consenso suficiente para definir uma agenda programática, nem interesse em ter a responsabilidade de governar.

O arranjo final, com poucas chances de mudar, consistiu em ceder às demandas do Centrão, não apenas entregando ministérios, mas aceitando carimbar suas indicações. O resultado foi que o presidente se tornou refém do Centrão, o qual não se acanhou em simultaneamente contribuir para o descontrole da administração, e devolver-lhe o ônus de governar.

O envolvimento pessoal de Bolsonaro no desmonte do Ministério da Saúde e de toda a boa política sanitária, atraiu para ele a insatisfação com a má gestão da crise pandêmica por seu governo. Com isso, atraiu todo o medo, a dor e a incerteza do povo, que o Centrão sequer hesitou em jogar em seu colo.

Sua base de apoio parlamentar está rebelada, os empresários desembarcam, a elite pensante se manifesta com pesadas críticas, sua popularidade se esvai e, em seu lugar, surge a ira do povo. Só falta um bom pretexto.

NA QUADRILHA, ELES TOCAM E NÓS, DANÇAMOS

SALVO CONDUTO PARA O ABUSO

Imaginemos um Continente (ou quase) chamado Prevaricatio, em que fosse de bom tom, para todos os detentores de algum tipo de poder, do mais minguado ao supremo, abusar desse naco de poder, por ações e omissões. Um ex-juiz foi suspeito de prevaricar, por divulgar ilegalmente informações sobre um ex-presidente, informações que comprovariam seu conluio com sua sucessora, para que esta o nomeasse aguazil do sultanato. A nomeação do aguazil teria o objetivo de dar imunidade ao ex-presidente, o quê, por caracterizar desvio de função, constituiria prevaricação.

Em 18 de março de 2016, o ministro x declarou nula a posse do ex-presidente, convalidando a suposta prevaricação do ex-juiz, e portanto estaria igualmente prevaricando. Então, para evitar a prevaricação do ex-presidente, ambos, o ex-juiz e o ministro x, também prevaricaram, por uma variedade de razões hipotéticas – entre as quais me abstenho de opinar – tais como evitar uma sobrevida política ao ex-presidente, ou impedir que o ex-presidente salvasse o mandato da então presidente, e assim por diante.

O ex-presidente foi, mais tarde, sentenciado pelo hoje ex-juiz, e por todas as instâncias possíveis e imagináveis, além de excomunhão política, sendo privado de exercer qualquer função eletiva no sultanato. A defesa do ex-presidente não admitiu a derrota, mesmo após esgotadas todas as hipóteses de recurso sobre questões substantivas, e centrou seu foco em denunciar o ex-juiz.

Caso o ex-presidente e sua defesa tivessem solicitado afastamento do então juiz, pelo abuso de divulgar matéria mantida sob sigilo, com a intenção de prejudicar o ex-presidente, teriam tido chance de ser atendidos. Entretanto, com todas as provas que o então juiz e sua Força Tarefa tinham reunido, correriam o risco de que outro juiz, não suspeito, proferisse sentenças análogas.

Nesta semana, o ex-presidente teve anuladas todas as sentenças proferidas em todas as instâncias e originadas pelo ex-juiz, o que equivale a uma absolvição com indulgência plenária para voltar a atuar no cenário político do sultanato, graças à caneta individual, esperta e autocrática, do juiz y. Não tão esperta, porque a anulação teve que restringir-se a defeito de foro e não à suspeição do ex-juiz. Portanto, as denúncias e todo o material probatório convalidado nas instâncias superiores continuam valendo, por enquanto, num contexto mais complexo e com desfecho imprevisível.

Ora, podemos pensar que todos os que, naquele tempo, aplaudiram o abuso de poder do ex-juiz, julgavam que o ex-presidente abusara de seu poder, e que era necessário pôr um basta em seu futuro político. Ou seja, tal como o juiz x, julgavam que o ex-juiz prevaricara pelo bem do País. Pode-se pensar que o juiz x também abusou do poder pelo bem da Justiça, e por isso foi também “anistiado” pela opinião pública.

Não seria exagero falar em prevaricação em série, uma vez que a maioria da corte suprema do sultanato mudou sua jurisprudência exclusivamente para livrar o ex-presidente da legalidade de prisão por sentença proferida em segunda instância, porque essa maioria julgava que manter o ex-presidente livre seria para o bem do País. E foi, por isso, anistiada pelos que julgavam que os abusos de poder do ex-presidente teriam sido para o bem do País.

A maneira como essas quatro personagens se movem de mãos dadas, cantando loas ao bem maior do País, lembra a dança das quadrilhas, essa divertida herança que os europeus nos deixaram. Mas não é nem um pouco divertido o legado imediato da “anistia” do ex-presidente.

Em primeiro lugar, a antecipação, já desencadeada, das eleições de 2022, cujo efeito deletério é, primeiro, o de decretar o fim da atual gestão, no momento em que mais precisamos de um governo centrado e competente para combater a pandemia e reativar a economia. Em segundo lugar, porque a paralisação de um governo, já sem rumo, poderia esvaziar a expectativa de acesso garantido do atual presidente ao segundo turno do próximo pleito.

Tudo indica que, para ele, essa contingência é inaceitável, só poderia ser fruto de fraude. Sua consequência poderá ser a tentativa de recurso a outras vias para se manter no poder.

Dr. Jekyll and Mr. Hide?

NÃO CREIO

Alguns observadores apostam que Bolsonaro irá usar a máscara de Paz e Amor, obrigado pela presença de Lula. Eu diria que Bolsonaro pode estar sendo empurrado por sua asa política para a máscara mas, como já vimos, não consegue passar 24 horas sem arrancá-la. Continuo achando que ele não muda e vai continuar batendo de frente contra quem quer que obstrua sua via vitoriosa para a divindade. Sua asa de justos o empurra contra a asa política e, pelo que vemos, exige fidelidade dele e de sua família (estou convencido, até prova em contrário, que Bolsonaro é refém de seus seguidores, e não o contrário).

Quanto ao Lula, ele se veste perfeitamente na fantasia de paz e amor e na de metalúrgico enfezado. Sabe comportar-se nas duas personagens e atua com perfeição quando e onde for necessário.

Como irão atuar, é impossível prever neste momento, mas chuto que Lula vai tentar usar os dois bonés. Entretanto, seu sucesso está comprometido diante de diferentes públicos – o empresariado, a direita democrática e até a parte da centro-esquerda que já não suporta o PT. Além disso, a pressão da ala revanchista da esquerda vai pressioná-lo para a radicalização.

Quanto a Bolsonaro, creio que em algum momento irá em frente a todo vapor – docemente constrangido, como diria o artista francês – nos braços de seus fiéis. Se, e quando, cair a ficha que ele não pode passar para o segundo turno, deus nos acuda.

BOLSONARO PAZ E AMOR?

NÃO CREIO

Posso estar enganado, mas nunca observei no Bolsonaro uma mudança de postura desde sua trajetória para a Presidência. Ele tem-se comportado como um ungido dos deuses para exercer o poder absoluto. Os que lhe impõem obstáculo não são adversários, nem apenas inimigos, são usurpadores, traidores da pátria e de deus, e merecem a morte. Ele se atribui poder de vida e morte.

No momento, ele está sendo paralisado por conselhos opostos, e se fantasia de Lulinha paz e amor. Vejam que ele não sabe nem como deve votar seu ministro no STF para melhor beneficiá-lo. Está perdido e sofre em ter que fingir que está fazendo concessões. É uma questão de tempo.

JORNALISTA PORTUGUÊS CULPA BRASILEIRO POR ELEGER BOLSONARO

CULPAR ELEITOR, DESCULPA DE PERDEDOR

Miguel de Sousa Tavares, jornalista polêmico, culpa o brasileiro no Youtube por eleger Bolsonaro. Seu português é impecável, e sua retórica invejável, mas desconhece o sisgema político brasileiro e o processo eleitoral de 2018. Culpar o eleitor é a desculpa dos perdedores de todos os matizes, da esquerda à direita. Não é fato que a classe média brasileira tenha elegido Bolsonaro por se opor ao PT. Porque a classe média se dividiu: parte em Lula/Hadad, parte se absteve, votou nulo ou anulou o voto, e apenas parte votou em Bolsonaro. Tampouco foi a classe média que se opôs ao PT, foi o PT que recusou aliar-se, até a candidatos de centro-esquerda, como Ciro Gomes. Nunca ouvi um brasileiro culpar nossos colegas e amigos portugueses, exilados pela ditadura sangrenta e pelo imperialismo cruel do salazarismo, e me dói a alma ouvir um português educado fazer o mesmo contra nosso povo.

O SURTO DO MESSIAS FRUSTRADO

E A “DERROTA” DE PIRRO

Neste comentário pretendo defender a tese de que o atual conflito aberto entre o Executivo, o STF e a Câmara, desencadeou um processo indesejado e imprevisível: atingiu um ponto de não retorno entre a trajetória golpista de uns, e o instinto de legítima defesa das instituições políticas fundamentais.

Minha convicção é de que a acachapante derrota pessoal de Bolsonaro, e sua omissão na tentativa de desautorar o STF e intimidar o Legislativo por interpostos bolsonaristas, impuseram um custo tão alto, que a reincidência arruinará definitivamente a continuidade de seu mandato. Do outro lado, entretanto, a Câmara e o STF, qualquer que seja nosso julgamento moral, saíram vitoriosos. Ambos, o STF sobretudo, mostraram que sua margem de manobra é muito superior à do Presidente da República. Juntos ou separados poderiam tornar sua vida um inferno.

Isto me inspira a reinventar a metáfora da vitória de Pirro – uma vitória que esgota seus recursos de tal maneira que a derrota seria inevitável na próxima batalha. O bolsonarismo desencadeou uma “derrota” de Pirro tão custosa, que outro surto golpista levaria à ruína do mandato presidencial.

Se observarmos bem, veremos que os auto proclamados estrategistas do governo tentaram fazer do seu obstáculo supostamente maior – o chamado “Centrão” – um colaborador. Tentaram comprar os parlamentares por migalhas, o que é, no mínimo, uma ofensa: um parlamentar que se preze não se vende. Pode emprestar seu voto com contrapartida, mas o pede de volta sempre que lhe parecer necessário à manutenção de seu mandato.

Não deu certo, e a nova tática em andamento consiste em entregar o governo nas mãos do Centrão, deixando o presidente livre para cuidar de sua obsessão em salvar o pouco que lhe resta de apoio em uma meia-dúzia de grupos de pressão que, hipoteticamente, irão acompanhá-lo numa aventura, ou garantirão seu acesso ao segundo turno em 2022 – o que vier primeiro.

A derrota acachapante, repito, mostrou que a minoria de veto, que constitui o Centrão, juntou-se à maioria da Câmara para mandar um recado claro: “ao Rei devo tudo, menos a honra”.

VESTIU UMA CAMISA AMARELA E SAIU POR AÍ

É CARNAVAL: HORA DE VER O AVESSO DO AVESSO

Parece que estou brincando com o que não se deve, mas meus argumentos são sérios. Se o mundo parece de cabeça para baixo, devemos pôr os pés no chão para entender o rumo das coisas. Se parece estar no avesso, por que não olhar pelo “avesso do avesso”, e ver as coisas tal como são? Se o rei se veste de palhaço, certamente há de haver um palhaço que se veste de rei e um pierrô de colombina.

Aqui vou ater-me à inversão de tomar o efeito pela causa. Refiro-me a um tipo de interpretação dos fatos com toda aparência de terem um laço causal, que de fato têm, só que na ordem inversa. O exemplo que me ocorre é o daqueles que atribuem o débâcle da economia aos efeitos da pandemia, quando a linha de evolução do PIB entrou em queda desde o início do governo Bolsonaro, um ano antes de se ter sequer notícia sobre a pandemia.

Ora, o que vem depois (a pandemia) não pode causar o que já existia antes. O caso é emblemático, porque a pandemia tem efetivamente relação causal com a dramática aceleração da queda do PIB. Essa relação causal, entretanto, não é simples nem direta: são as reações à pandemia – tanto pessoais como empresariais e de políticas públicas – que provocam a diminuição das atividades econômicas, esta sim, responsável pela queda do PIB. O vírus, em si, não tem qualquer efeito direto sobre o setor produtivo.

No entanto, quase sem exceção, a opinião geral atribui a causa do mau desempenho da economia, que veio antes, à pandemia, que veio depois. Esta confusão não é irrelevante, do tipo “quem veio antes, o ovo ou a galinha?” É, ao contrário, crucial tanto para a retomada do crescimento, quanto para a superação da pandemia.

Se não foi a pandemia que causou o mau desempenho da economia, seria necessário buscar outras causas, não de natureza sanitária, mas de natureza política e econômica. Minha hipótese é que seu mau desempenho resulta de um conjunto de fatores provocados pela falta de rumo da economia – isto é, decisões equivocadas, iniciativas contraditórias e omissões. Esta falta de rumo da economia, por sua vez, deriva de um conjunto de fatores de natureza política – repito: decisões equivocadas, iniciativas contraditórias e omissões, que criaram um clima dificilmente remediável de desconfiança mútua entre o Executivo e o Legislativo (sem falar no Judiciário).

Sem clareza sobre o fluxo causal, a probabilidade de diagnóstico correto do problema é ínfima, resultando em soluções igualmente equivocadas. Ora, imaginemos que a crise econômica resultasse dos obstáculos impostos pela pandemia ao livre desempenho das atividades econômicas, e não da política econômica equivocada. Então, sua solução residiria em livrar-se o quanto antes desses obstáculos – o combate à pandemia – e, na economia, ater-se ao “tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

Daí a lógica perversa de impor obstáculos aos que combatem a Covid-19 e tomar como inimigos mortais os que neles acreditam e os apoiam, isto é, nós, a imensa maioria dos cidadãos brasileiro,

INCOMPETÊNCIA TEM LIMITES

NEM TODA GUERRA TEM QUARTEL

Um profissional bem treinado, durante longos anos em nível superior, e que tenha atingido os mais altos níveis da carreira, sempre possui algum grau de incompetência. E não se pode excluir dessa limitação os militares que cumpriram as exigências de disciplina e zelo a que são submetidos, e o requisito de seguir cursos de aperfeiçoamento para lograr promoções.

Uma das modas de RH, tempos atrás, foi a de avaliar o limite do avanço nas organizações pelo grau de incompetência atingido pelo indivíduo. Acreditava-se que o posto mais alto seria aquele acima do qual sua incompetência não seria mais tolerada.

Por estas e outras razões, não creio que um general de Intendência do Exército, por ventura acantonado no Ministério da Saúde, pode passar por um total incompetente, incapaz de comprar, pagar, buscar, entregar e distribuir equipamentos e produtos, de acordo com normas bem estabelecidas. Ora, estas competências formam o grosso do que um tal general teria aprendido na Academia Militar, e estaria executando desde quando era segundo-tenente. Assim sendo, incompetente ele não poderia ser.

Para avaliar sua competência, teríamos que levar em conta que um intendente não foi preparado para conduzir uma unidade de combate, mas sim para saber como se comportar em ambiente de combate. E nisso, estou convencido de que a maior autoridade sanitária no País de nossa hipótese, ao contrário do que se pensa, pode ser considerada altamente competente.

Para empregar a metáfora da guerra, tão usada no contexto da Pandemia, diria que esse general poderia bem mostrar sua competência para participar de uma guerra sem quartel contra o vírus inimigo. Ainda que sem treinamento para atuar nesse tipo de combate, sendo general, teria sido formado para comandar em situações emergenciais ou desconhecidas.

Dadas essas circunstâncias, seria possível admitir que esse general não tenha competência para seguir uma estratégia de combate ao vírus? Que, por pura incompetência, não siga um plano de prontidão para esse combate, não avalie, não compre e não pague, nem traga, nem distribua qualquer dos insumos indispensáveis a esse combate, como equipamentos de proteção individual adequados ao tipo de combate, equipamento hospitalar normal e de campanha, equipamento para cuidados intensivos, armas letais contra o vírus. Letais contra o vírus, e não armas inócuas para o combate, mas eficazes para incapacitar quem a elas seja exposto.

Diante da opção de empregar as vacinas – únicas armas capazes de exterminar o inimigo sem causar danos às populações a serem protegidas -, como explicar como incompetência que nosso hipotético general não tenha avaliado, comprado, pago, estocado e distribuído a tempo as vacinas oferecidas? E como entender como pura incompetência que, diante de vacinas já providenciadas por terceiros, recuse-se a comandar a batalha da vacinação, única competência que lhe cabe exclusivamente?

E se o alvo a ser combatido não fosse o vírus, mas sim a imensa maioria dos que desejam sua sobrevivência e a de seus compatriotas, almejam o retorno da vida normal, precisam da retomada da economia e da normalidade de um governo estável? Se assim fosse, tudo o que seria visto como fruto de incompetência pode ser entendido como uma estratégia lógica e cristalina para efeito desta hipótese, embora possivelmente inconsciente para seus executores.

E se fosse uma estratégia para livrar-se de todos os que se constituem em obstáculo a essa minúscula minoria, cuja sobrevivência política depende de uma conjuntura de governo sem rumo, de um povo dependente de migalhas para sobreviver e de uma elite política inconfiável, pronta a alugar seu voto, até o momento oportuno para despejar o mito que, na verdade, não é mais do que é um inquilino inadimplente do poder.

Este vai para José Serra, com quem tenho discutido sobre a questão de saber se a loucura que nos rodeia tem lógica. Os argumentos e conclusões aqui contidos são de minha exclusiva responsabilidade.

TERRA DE NINGUÉM

E NÃO É A VENEZUELA

Quem poderia imaginar que a América de Trump destruiria as bases de legitimidade do sistema político dos EUA, ou seja, o fundamento eleitoral da autoridade e o poder da Lei. Pois é o que Trump deliberadamente vem tentando, ao seguir a cartilha bolivariana de Chávez de cooptar, comprar ou submeter pela força as instituições. Foi o que tentei demonstrar em blog de janeiro de 2020, cuja hipótese conclusiva era de que o Senado lhe tinha dado um salvo conduto para descumprir abertamente a Lei. Fez isso quando admitiu que os crimes de alta traição que teria cometido, de acordo com a conclusão do processo de impeachment, não contavam, uma vez que caberia a ele, e não à maioria do eleitorado, decidir o que seria melhor para o País, isto é, sua reeleição.

Com base nessa hipótese conclusiva, propus também uma educated guess, de que, caso Trump não fosse barrado, sua reeleição tornaria possível a consolidação de um estado autoritário, com a perpetuação de seu mandato populista. Este seria o ponto de não retorno similar aos casos da Venezuela, da Bolívia e do Equador, para dar alguns exemplos.

Enquanto escrevo esta linha, divido minha atenção com a mídia internacional, para assistir ao que as redações americanas estão chamando de insurreição, e um senador republicano acaba de comparar com os recentes acontecimentos na Bielorrússia.

Trump não precisou de um segundo mandato para confirmar o título que já tinha sido escolhido para este blog, isto é, tornar seu País em terra sem lei. A opinião pública americana estava discutindo ultimamente se o presente ataque trumpiano à democracia era apenas um golpe de vigarista, para melhor tirar proveito mais tarde, no que quer que tivesse em mente, ou um verdadeiro golpe de Estado. Até agora a discussão parecia apenas uma questão retórica. Afinal, ambos os partidos e todos os comentaristas concordavam em que os recursos republicanos esperados contra a sacramentação do resultado das urnas era, no mínimo, para marcar posição e, no máximo, para solapar a legitimidade de Joe Biden. Mas neste 5 de janeiro, o cenário partidário americano abriu um precedente para tornar o respeito à lei uma questão de predileção e não de dever.

Um candidato democrata na Pensilvânia foi eleito no último pleito e teve sua eleição contestada pelo opositor republicano, o qual perdeu o recurso junto ao governo do Estado. Um recurso à Suprema Corte do Estado também confirmou a eleição do democrata que teve, entretanto, sua posse negada pela maioria republicana do Senado Estadual. Que não se limitou a isso: o vice-Governador, um democrata, que tem a prerrogativa de presidir o Senado Estadual, foi destituído pela maioria do plenário e constrangido a retirar-se.

O inverso da igualdade de todos perante a Lei, é o ditado romano “Quod licet Jovi non licet bovi” (o que é permitido a Júpiter não é permitido a um boi). O que uma “manada” ressentida, empobrecida e enganada com uma vitória ilusória e, por cima, armado até os dentes, poderá ter como incentivo para aceitar apenas as leis que lhe convêm! O assalto ao Congresso mostra o que há para vir no berço da república moderna.

E nos convida a enfrentar seriamente os tremendos obstáculos contra nossas prioridades evidentes – a retomada do crescimento e sua condição necessária: a vacinação em massa.

A CRISE PERMANENTE DO SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO

A GOTA D’ÁGUA

É um equívoco tratar como fato isolado a conjuntura crítica que hoje enfrentamos. Refiro-me ao conjunto de imbróglios em que as instituições fundamentais de nosso sistema político se chafurdam incontinentes. Refiro-me à perda aparentemente total de credibilidade do  Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Refiro-me à sensação de desamparo da população diante de um perigo mortal (não se trata de metáfora: a pandemia da Covid-19, tal como vem sendo tratada, coloca cada um de nós em constante risco de vida). Refiro-me à imprevisibilidade total das ações e omissões dos guardiões da Constituição, da segurança e da sobrevivência física de nosso país, e a suas atitudes zombeteiras diante da vulnerabilidade do povo a que juraram servir.

Os conceitos de crise política, de crise do presidencialismo, ou de crise da democracia representativa, que nem sempre se prestam para entender sua natureza, agora já não  servem sequer para descrevê-la. Não se trata de  saber se as instituições funcionam ou não, elas são disfuncionais, fazem exatamente o que não deveriam fazer: o judiciário (desculpe se generalizo injustamente) não aplica mal a Lei, reescreve-a ao sabor de como sopram os ventos; o legislativo não apenas se omite do dever de estabelecer a Lei, parece empenhado em passar a batata quente ao primeiro que se dispuser; e o Executivo, não satisfeito em não governar, impede que se governe.

Vou defender aqui duas hipóteses. A primeira é de que se trata de uma crise intermitente, que tem-se reproduzido, pelo menos, desde a década de 1920, levando, em cada caso, a um colapso da normalidade constitucional. Fique claro, desde já, que não se trata de uma crença no eterno retorno: cada crise eclode por diferentes razões, e seu desenlace é ora um golpe, uma revolução, ou um governo que simplesmente se esvanece e precisa ser removido.

A segunda é de que se trata de uma crise do sistema político, e não apenas do  presidencialismo, do governo, ou de dimensões específicas da política doméstica, tais como a economia política, a mobilidade urbana, etc. A década de 1920 foi um período de contínuas rebeliões, civis e militares, que desnudaram a disfuncionalidade do pacto federativo, então vigente, e levaram à Revolução de 1930.

Ao fim da 2ª guerra, a aposta getulista numa modernização reacionária fizera, da década de 30, um novo período de rebeliões, ora de esquerda, ora de direita. A isso somou-se o engajamento de seu governo do lado errado da guerra (Roosevelt) contra o regime no qual buscara inspiração (Mussolini), levando ao desmoronamento da Revolução de 30, cujos escombros foram parcialmente herdados pelo regime de 1946.

Seguiu-se um período de crises políticas intermitentes: a derrubada de Getúlio em 1954, a tentativa de golpe para evitar a eleição de Juscelino, as rebeliões da Aeronáutica contra seu governo, a queda de Jânio Quadro, e o golpe militar fracassado para evitar a posse do vice-Presidente João Goulart. Apesar do golpe constitucional/congressual de adoção de um “parlamentarismo”, que  limitava os poderes de Jango – logo revertido ao presidencialismo puro – tratava-se de uma intermitência de crises essencialmente políticas, em que o sistema político e seus fundamentos, democracia representativa, separação de poderes, voto popular universal direto, governo federativo, estado de direito sacramentado na Constituição, bem ou mal sobreviveram. Até 1964.

Com o sistema político desmoronando, devido à disfuncionalidade das relações entre o Executivo e o Congresso e ao tratamento ambivalente dado aos problemas sociais, o golpe cívico-militar de 64 demoliu, por meio de um par de decisões, o que restava do sistema político. Em seu lugar, criou-se um novo sistema, conhecido na historiografia como regime burocrático-militar, o que significa que os tecnocratas governam, o alto-comando militar mantém o poder, e a classe política faz o que lhe é dado fazer pelo militares – ou simplesmente fica quieta.

No novo regime político, os demais poderes ficaram subordinados ao alto-comando militar, a Constituição foi submetida a decisões unilaterais, e o estado de direito, suspenso; a democracia representativa foi limitada em todos os níveis de governo, e a liberdade de opinião e de manifestação estreitamente limitada.

A hipótese que estou defendendo é de que a essência da mudança de regime em 1964, diferente das crises políticas que afetam apenas parte do sistema político, é uma ruptura de tal ordem que resulta em mudança do sistema político como um todo, característica que esse tipo de crise compartilha com a Revolução de 30 e com sua queda em 1946. Entretanto, enquanto as disfuncionalidades do regime de 30 foram-se manifestando no final da década e levaram  à sua queda na década seguinte, o regime burocrático-militar, desde o início, não teve legitimidade suficiente para abolir o voto popular, e restringiu-se a limitar seu alcance.

Ao longo dos anos, o regime foi fazendo experimentos para limitar mais ou menos o alcance do voto, interferir mais ou menos nos mandatos oriundos do voto popular. Chegou a criar uma fórmula feita para garantir, na ponta do lápis, que o “candidato” à presidência indicado (informalmente) pelo alto-comando, seria necessariamente referendado pelo Colégio Eleitoral, o qual, apesar de todas as suas limitações, ecoava a vontade popular. Em poucas palavras, o candidato presidencial ungido pelo alto-comando, que representava uma coalizão  burocrático-militar-empresarial, sequer chegou ao Colégio Eleitoral para ser referendado. Antes foi barrado, na Convenção do partido do governo, por um populista de direita com amplo apoio entre a classe política governista e setores empresariais – Paulo Maluf – cuja escolha, por sua vez, provocou uma dissidência na bancada do governo, suficiente para dar maioria ao candidato da oposição.

É escusado dizer que a eleição de um presidente divergente da escolha do  alto-comando, a convocação de uma Assembleia Constituinte, a adoção de um programa de “Remoção do Entulho Autoritário”, viraram o sistema político vigente de pernas para o ar. O mesmo não sucedeu, entretanto, em decorrência do impeachment de Fernando Collor e Dilma Rousseff, nem quando das tentativas fracassadas de derrubar Temer – naquilo que, para todos os fins e efeitos práticos, foi também um governo levado ao colapso.

O sistema político da Constituição de 1988 tem-se mostrado propenso às crises políticas, que venho descrevendo como uma crise intermitente, isto é, a mesma crise, protagonizada seja por presidentes aventureiros, ou com baixa popularidade, ou sem legitimidade, que se reproduz com pequenos intervalos de tentativas de estabilização.

O que temos no governo Bolsonaro é outra coisa. Como disse acima, o sistema político está desmoronando graças à imprevisibilidade e a progressiva perda de legitimidade das ações e omissões dos guardiões da Constituição, da segurança e da sobrevivência física de nosso país. Um copo cheio de mágoa à espera da gota que transbordará.

LÁ E CÁ MAUS VENTOS HÁ

DEPOIS DA PANTRUMPIA HAVERÁ BONANÇA?

A história política recente nos traz lições sobre o mundo que enfrentaremos após esta tragédia, que combina o impacto da pandemia, um cenário internacional imprevisível, e o risco de colapso de nossa economia.

É do conhecimento de todos a corrosão das democracias representativas em todo o mundo. É patente, no Brasil, a desconfiança nas autoridades eleitas, a noção de que os interesses dos representantes passam na frente das necessidades dos representados, que tampouco recebem o equivalente do que contribuem para o bem estar geral. Isto é algo que não passa despercebido, é consenso na maioria da elite política.

Desde as manifestações difusas de insatisfação popular da década passada, só não enxerga quem não quer ou quem não viu a história passar porque, como diria John Lennon, estava “ocupado fazendo outros planos”. Na Europa inteira, as democracias, acossadas por governos populistas, sofrem hoje os efeitos da inesperada recusa de obediência e disciplina para defender-se coletivamente da recidiva da pandemia.

Donald Trump é um exemplo extremo desse assalto à legitimidade da representação popular. Ele combina com destreza a exploração do ressentimento de minorias com o oportunismo das frações mais retrógadas da elite política americana. Afirma-se que Trump seria a pessoa menos preparada e menos adequada para governar a maior potência mundial, mas foi eleito – e agora reeleito com mais de 48% dos votos – precisamente porque reunia um conjunto de vícios profissionais e traços de caráter que lhe permitiram passar por cima do Partido Republicano. Para tanto empenhou-se em manipular o ressentimento, a raiva e o desejo de revanche da parte da população mais afetada pela última crise financeira.

Trump foi eleito porque mobilizou os piores sentimentos de parte da população, e não por seu preparo e adequação para governar. Foi eleito porque foi o candidato mais bem preparado e adequado para manipular essa enorme distância, criada ao longo das últimas décadas, entre a classe política das sociedades democráticas e a insatisfação generalizada entre seus representados que se sentem despojados de condições condignas de vida.

Isso, porém, não compensou a ausência de qualidades para governar. Internamente, esmerou-se em desmontar ou paralisar as instituições governamentais mais vitais, da Inteligência à Justiça, passando pela Política Externa e a Defesa.

No plano externo, comandou uma cruzada tripartite. Primeiro, contra os países aliados, que destratou com ofensas, fez ameaças e pressionou para obter intervenção em assuntos internos de seu interesse pessoal. Nas instituições internacionais, tratou de desmontar ou paralisá-las, como no caso da Organização Mundial do Comércio e da Organização Mundial da Saúde. Quanto aos compromissos assumidos, ou descumpriu ou retirou-se de regimes tão vitais como o acordo de Paris sobre Mudança Climática, o acordo com a Rússia sobre eliminação de mísseis nucleares de curto e longo alcance, e o acordo para impedir a proliferação nuclear com o Irã, cujo único resultado prático foi a retomada do programa nuclear daquele país e o retorno dos radicais ao poder.

Seu desempenho nas relações com seu próprio governo e com amigos, com o Congresso ou com outros países é, com poucas exceções, medíocre, quando não desastroso. De todos os alardeados “deals” – no sentido de “negócio fechado” – em que se disse o melhor negociador do mundo, só conseguiu sucesso em mudar, às pressas, o nome do NAFTA (acordo comercial com o Canadá e o México). O acordo do Século com a Coréia do Norte fracassou, mas deu tempo para Kim Jong-un completar o ciclo dos mísseis transcontinentais.

Seu insucesso vem da incapacidade de admitir concessões mútuas, um jogo em que as concessões de um dos lados podem ser um ganho para ambos, e não necessariamente uma perda para o lado oposto. O melhor exemplo é a “guerra comercial” com a China, símbolo da política de América First,  cujas condições implicariam ganho exclusivo para os EUA. O “deal” em questão mal chegou ao pape mas, na prática, dele não saiu. O que chegou foi, para o consumidor americano, aumento de preço e, para os produtores, aumento  de custos e escassez – devido à dependência da economia americana de insumos chineses mais competitivos.

Frente a seus tradicionais aliados, essa política resultou em desmontar toda uma rede de alinhamento diplomático e militar que manteve, nos últimos 80 anos, as guerras e o terrorismo longe de seu território. Das economias mais ricas aos pequenos países, profundamente interdependentes comercial, financeira e politicamente com os EUA, a maioria encontra-se hoje num dilema entre fugir de suas ameaças e resistir ao fascínio dos arriscados negócios da China.

As ameaças de abandonar a Europa se os países não aumentassem sua contribuição para o orçamento da OTAN, não foram a atendidas, mas fragilizaram a União Europeia diante das pressões centrífugas dos governos populistas. Sua retirada impulsiva do Iraque, do combate ao Estado Islâmico e do Afeganistão, e a traição aos aliados curdos, em nada contribuíram para a estabilidade na região.

O legado de Trump ao próximo mandatário é mais insegurança, mais instabilidade financeira, menos cooperação no combate a calamidades ambientais ou sanitárias, menos cooperação no âmbito científico e tecnológico e, mais grave, mais ódio e ressentimento.

Cedo para falar das consequências aqui para a terrinha. Só sabemos que lá e cá maus ventos há. Prometo estudar mais um pouco e voltar em breve.

TRUMP CONTRA DEUS E O MUNDO

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ELEIÇÃO DO FIM DO  MUNDO

Como Trump se comporta diante das eleições: contra. Não se trata de uma conduta contrária a um sistema eleitoral fraudulento o que implicaria não somente denunciar, mas atuar para impedir ou mitigar a fraude. Desde a campanha de  2016 Trump não cessou de atuar contra o voto, para desencorajar os eleitores, não para atrair seus apoiadores. Essa conduta pode ter dois efeitos, o primeiro de impedir os que não sabem votar de exercerem esse direito (que  em sua opinião não merecem ter). O segundo, de induzir seus fiéis seguidores a dispensarem a intermediação do voto, consolidando sua relação com o líder sem mediação.

Trump não se opôs à apuração dos votos por impulso, opôs-se à continuação da apuração a partir do momento em que tomou a dianteira nas zonas eleitorais mais disputadas e nas quais as previsões indicavam alta probabilidade de sua derrota.

Um pouco em toda parte, tenho ouvido e lido que, qualquer que seja o desfecho das eleições americanas, se não o mundo, os EUA não serão mais o mesmo. Com o devido crédito a Elizabeth Balbachevsky, que  me deu essa dica, a conduta de Trump no poder provocou rupturas no sistema político americano como as produzidas pelas falhas tectônicas, retratadas na penúltima capa da Foreign Affairs, sob o título “O Mundo criado por Trump”.

Robert Dahl, pai fundador da teoria moderna da democracia, distinguia duas dimensões fundamentais do que ele chamou Poliarquia (a democracia possível): inclusão-exclusão e liberdade de competição. A democracia americana sempre conviveu com algum grau de exclusão dos direitos de cidadania, mas sempre garantiu a livre competição pelo poder entre as elites – especialmente as elites brancas, mas não esqueçamos as barreiras que irlandeses, italianos e judeus tiveram que enfrentar naquele país. Pois é essa duplicidade, covenientemente explorada por Trump que ameaça a democracia americana tal como a conhecemos.

Essa duplicidade não poderia existir sem se apoiar em alguma regra que, no caso, podemos chamar de um gentlemen’s agreement entre as elites políticas. Estas disputam o poder livremente, protegidas da competição de terceiras partes que, para disputar o poder, não terão chance se não competirem dentro de um dos partidos criados pelo establishment. Por sua vez, os interesses locais e regionais ficam livres para excluir quaisquer elementos perturbadores por motivos de cor, “raça”, religião, mesmo após décadas de legislação federal sobre os direitos civis e políticos.

Trump atuou para demolir o âmago da democracia americana por cima e por baixo. Incentivou os poderes locais a adotar todo tipo de obstáculo ao exercício do voto. A pretexto de privatizar o sistema postal mudou sua direção com instruções claras de dificultar o voto pelo correio. Conseguiu, apesar da tépida reação do Congresso. Ameaçou de violência os eleitores prováveis da oposição. Mobilizou ou, pelo menos, apoiou grupos armados para “fiscalizar” a lisura do pleito. E avisou, com mais de quatro anos de antecedência que não aceita o voto popular como critério para designar quem exerce o poder. É o que está ameaçando agora, exigindo que a apuração seja cancelada para favorecê-lo.

Se vai conseguir ou não, sequer pode ser resolvido nesse tipo de arranjo tácito, pois não tem lugar na legislação, nem pode designar uma autoridade que diga que a eleição terminou, proclame quem ganhou e marque uma data para dizer: a partir de agora, Você manda. Assim sendo, o futuro da democracia nos Estados Unidos está nas mãos de Deus… ou do diabo.

O CAPITÃO ESTÁ NO COMANDO

SALVE-SE QUEM PUDER

Por favor, que me desculpem, mas não consigo entender como é possível ficar perplexo diante das repetidas reações explosivas do Presidente. Afinal, é perfeitamente previsível que explosões se repitam e que sua causa não seja cristalina.

Também não entendo como é possível ficar tentando, reiteradamente, adivinhar o que ele tem em mente, deixando de lado a observação de sua conduta, uma vez que, em bom português, o que ele diz não se escreve. Primeiro, não é possível observar o que alguém tem em mente e, ademais, se é sabido que não há nexo causal entre o que nosso presidente diz e o que ele faz, é irrelevante saber o que ele pensa a respeito do que diz ou a respeito do que faz.

A falta de entendimento dessa premissa talvez explique os palpites mais frequentes sobre as intenções presidenciais. Há pouco vinha-se atribuindo suas explosões, e suas outras condutas esdrúxulas, à obsessão presidencial pela imunidade de sua família e seus amigos, ou por relaxamento das leis de trânsito, ou por remédios inócuos. Agora tenta-se explicar tudo e seu oposto, pela razão de que o Presidente só pensa em sua reeleição. Mas isso explicaria a conduta de quem quer que tenha mandato eletivo o quê, convenhamos, é inteiramente compreensível.

O último caso de perplexidade foi a explosão motivada pela vacina paulista, atribuída a sua obsessão de ganhar as eleições de 2022. Bom, obsessão de perder é que seria estranho – embora, sendo de quem se trata, não seria totalmente raro. Mas, depois disso, vieram as explosões da obrigatoriedade da vacina e agora a do preço do arroz. Tudo, evidentemente, como estratégia motivada pela obsessão de ganhar as eleições de 2022. Ao contrário de um cálculo estratégico, alguém obcecado se inclinaria mais a agir por impulso, de olhos fechados, como se diz.

Ora, o que explica tudo não explica nada. Nem poderia ser parte de uma estratégia porque, no conjunto, essas obsessões claramente não se concatenam, nem sequer, tomadas isoladamente, poderiam servir de evidências de uma conduta voltada para ganhar eleição. Quem destrata um possível eleitor, que ingenuamente reclama do preço do arroz e é tratado a pontapés? Quem se compromete abertamente contra uma vacina, quando resultados de pesquisa apontam que 85% dos eleitores estão ansiosos a sua espera? Quem se envolve numa eleição local, escolhendo o maior perdedor de eleições executivas, para, com isso, somar as rejeições de ambos?

Minha hipótese é que ele não adota uma estratégia, porque não foi treinado para isso, foi treinado apenas para comandar ações táticas, mesmo assim, pelo que posso observar de sua conduta, trata-se de um  número reduzido e grosseiro de opções táticas.

E com tudo, sem nunca ter comandado mais do que um punhado de pelotões, o Capitão está no comando do País. Salve-se quem puder.

COMPETIÇÃO DE MIJO A DISTÂNCIA

A GUERRA DAS CANETAS

Excuse my Freudism, mas não há nada que me lembre tanto essas disputas de mijo a distância – tão comuns na minha infância entre meninos na pré puberdade – do que essa guerra de canetadas entre próceres desta malfadada República. E não é num canto discreto, longe de olhos adultos, mas ao vivo e em cores. Bem, não creio que precise explicar como uma caneta pode ser interpretada como um objeto fálico dotado de poder…

A autoridade máxima, sem mais nem menos, sorrindo em público, como se tivesse acabado de entender uma piada suja, mostrava uma caneta bic como quem empunha um dardo apontado para um alvo imaginário. E comentava, com o mesmo sorriso, que sua caneta era mais poderosa do que a de outra autoridade magna.

Mal comparando com o “dedazo”, como se chamava a decisão presidencial de indicar seu sucessor na Presidência do México, nossa autoridade máxima é muito dada ao “canetazo”. Sem mais nem menos, sob um céu de brigadeiro, lançava mão da caneta e demitia todo o pessoal de uma agência, ou emitia decretos com frequência desenfreada, como se tudo o que saísse de sua caneta fosse lei ipso facto.

Todo esse esforço se tornou inútil e cansativo, já que os obstáculos institucionais o obrigaram  a anular a maioria de seus atos. E lá vinham novos canetazos com os mesmos vícios, igualmente inúteis e cansativos. Mas o que fazer? O prazer de manusear a caneta já se tornara um vício.

Outros próceres parecem não ter o inconsciente tão à flor da pele – ou ao alcance das mãos – e usam a caneta, doutores que são das leis, no recôndito de seus gabinetes, onde escrevem e reescrevem os destinos das pessoas e das instituições. É como se a caneta lhes propiciasse uma intimidade ilimitada com ambas, pessoas e instituições, que os incita a intrometer-se onde queiram, muitas vezes sem serem chamados.

Um deles, rábula de profissão e doutor da lei por decisão presidencial, tem praticado com afinco a arte de usar a caneta para escrever por cima e reescrever o que tiver pela frente, uma pena bem carregada nas tintas. Uma de sua primeira façanhas foi a de se voluntariar para, em suas palavras, redigir inteiramente um novo rito do impeachment presidencial.

Sem mencionar o tamanho do encargo, que obrigaria a reformular desde dispositivos constitucionais, a leis, códigos legais, regimentos e normas de procedimento dos três poderes, implicaria também concentrar em uma só caneta todos os poderes exercidos pela Constituinte, o Congresso, o Supremo e o Executivo. A grita foi grande e a super caneta teve que recolher-se a sua insignificância.

Mas não as ânsias douto-legais de seu portador: o mais recente episódio foi sua intervenção sobre o processo de designação dos reitores das Universidades federais. Trata-se de um processo que envolve dispositivos constitucionais, leis que foram sendo alteradas nos últimos 60 anos, resoluções do Conselho Nacional de Educação, Leis Complementares, como a de Diretrizes e Bases da Educação, a famosa LDB, e os Estatutos e Regimentos de algumas dezenas de Universidades.

Desta vez, o conflito que levou a questão ao Supremo é simples de explicar: as universidades federais se acostumaram, ao longo de mais de uma década, a obter a nomeação do reitor por voto direto da “comunidade” de professores, estudantes e funcionários, por meio de uma “consulta”. Seu resultado é acatado pelo Conselho Universitário (a autoridade máxima da instituição, prevista em lei) que, por sua vez, forma uma lista tríplice encabeçada invariavelmente pelo vencedor da “consulta”, o qual tem sido simplesmente referendado pelo MEC e a Presidência.

Só que o ritual da lei vigente que, neste particular, vem sendo mantido apesar de mudanças feitas nos últimos 60 anos, estabelece que o reitor é designado pelo Presidente, a partir de uma lista tríplice eleita pelo órgão de máxima representação da universidade. O conflito legal é sobre a prerrogativa do Presidente para designar conforme a lei, ou sua obrigação de referendar o nome do mais votado na consulta, como deseja a “comunidade”.

Assim sendo, não haveria nada a reescrever, pois basta dizer se a lei vigente vige ou não, o que já virou um hábito no STF. E é comum quando se trata de leis que incomodam setores numerosos ou poderosos da sociedade. Getúlio já dizia – ou lhe era atribuído ter dito – “a lei, ora, a lei”. É verdade que isso era dito em períodos em que o esgarçamento do Estado de Direito era mais avançado.

Pois bem, o lado doutor-Jeckyl-da-lei, mandou cumprir a lei, que diz que uma lista tríplice deve ser enviada ao Presidente, mas seu lado escriba-Hide escreveu por cima, com tinta vermelha: o Presidente só pode designar o primeiro da lista. Para que serve, então, a lista tríplice, a não ser para reduzir a caneta presidencial a sua insignificância?

Preparem-se, os doutores da lei estão se digladiando a golpes de caneta remota, o que só agrava os conflitos e erode a proteção legal a que temos direito.