SALVO CONDUTO PARA O ABUSO
Imaginemos um Continente (ou quase) chamado Prevaricatio, em que fosse de bom tom, para todos os detentores de algum tipo de poder, do mais minguado ao supremo, abusar desse naco de poder, por ações e omissões. Um ex-juiz foi suspeito de prevaricar, por divulgar ilegalmente informações sobre um ex-presidente, informações que comprovariam seu conluio com sua sucessora, para que esta o nomeasse aguazil do sultanato. A nomeação do aguazil teria o objetivo de dar imunidade ao ex-presidente, o quê, por caracterizar desvio de função, constituiria prevaricação.
Em 18 de março de 2016, o ministro x declarou nula a posse do ex-presidente, convalidando a suposta prevaricação do ex-juiz, e portanto estaria igualmente prevaricando. Então, para evitar a prevaricação do ex-presidente, ambos, o ex-juiz e o ministro x, também prevaricaram, por uma variedade de razões hipotéticas – entre as quais me abstenho de opinar – tais como evitar uma sobrevida política ao ex-presidente, ou impedir que o ex-presidente salvasse o mandato da então presidente, e assim por diante.
O ex-presidente foi, mais tarde, sentenciado pelo hoje ex-juiz, e por todas as instâncias possíveis e imagináveis, além de excomunhão política, sendo privado de exercer qualquer função eletiva no sultanato. A defesa do ex-presidente não admitiu a derrota, mesmo após esgotadas todas as hipóteses de recurso sobre questões substantivas, e centrou seu foco em denunciar o ex-juiz.
Caso o ex-presidente e sua defesa tivessem solicitado afastamento do então juiz, pelo abuso de divulgar matéria mantida sob sigilo, com a intenção de prejudicar o ex-presidente, teriam tido chance de ser atendidos. Entretanto, com todas as provas que o então juiz e sua Força Tarefa tinham reunido, correriam o risco de que outro juiz, não suspeito, proferisse sentenças análogas.
Nesta semana, o ex-presidente teve anuladas todas as sentenças proferidas em todas as instâncias e originadas pelo ex-juiz, o que equivale a uma absolvição com indulgência plenária para voltar a atuar no cenário político do sultanato, graças à caneta individual, esperta e autocrática, do juiz y. Não tão esperta, porque a anulação teve que restringir-se a defeito de foro e não à suspeição do ex-juiz. Portanto, as denúncias e todo o material probatório convalidado nas instâncias superiores continuam valendo, por enquanto, num contexto mais complexo e com desfecho imprevisível.
Ora, podemos pensar que todos os que, naquele tempo, aplaudiram o abuso de poder do ex-juiz, julgavam que o ex-presidente abusara de seu poder, e que era necessário pôr um basta em seu futuro político. Ou seja, tal como o juiz x, julgavam que o ex-juiz prevaricara pelo bem do País. Pode-se pensar que o juiz x também abusou do poder pelo bem da Justiça, e por isso foi também “anistiado” pela opinião pública.
Não seria exagero falar em prevaricação em série, uma vez que a maioria da corte suprema do sultanato mudou sua jurisprudência exclusivamente para livrar o ex-presidente da legalidade de prisão por sentença proferida em segunda instância, porque essa maioria julgava que manter o ex-presidente livre seria para o bem do País. E foi, por isso, anistiada pelos que julgavam que os abusos de poder do ex-presidente teriam sido para o bem do País.
A maneira como essas quatro personagens se movem de mãos dadas, cantando loas ao bem maior do País, lembra a dança das quadrilhas, essa divertida herança que os europeus nos deixaram. Mas não é nem um pouco divertido o legado imediato da “anistia” do ex-presidente.
Em primeiro lugar, a antecipação, já desencadeada, das eleições de 2022, cujo efeito deletério é, primeiro, o de decretar o fim da atual gestão, no momento em que mais precisamos de um governo centrado e competente para combater a pandemia e reativar a economia. Em segundo lugar, porque a paralisação de um governo, já sem rumo, poderia esvaziar a expectativa de acesso garantido do atual presidente ao segundo turno do próximo pleito.
Tudo indica que, para ele, essa contingência é inaceitável, só poderia ser fruto de fraude. Sua consequência poderá ser a tentativa de recurso a outras vias para se manter no poder.