A GUERRA DAS CANETAS
Excuse my Freudism, mas não há nada que me lembre tanto essas disputas de mijo a distância – tão comuns na minha infância entre meninos na pré puberdade – do que essa guerra de canetadas entre próceres desta malfadada República. E não é num canto discreto, longe de olhos adultos, mas ao vivo e em cores. Bem, não creio que precise explicar como uma caneta pode ser interpretada como um objeto fálico dotado de poder…
A autoridade máxima, sem mais nem menos, sorrindo em público, como se tivesse acabado de entender uma piada suja, mostrava uma caneta bic como quem empunha um dardo apontado para um alvo imaginário. E comentava, com o mesmo sorriso, que sua caneta era mais poderosa do que a de outra autoridade magna.
Mal comparando com o “dedazo”, como se chamava a decisão presidencial de indicar seu sucessor na Presidência do México, nossa autoridade máxima é muito dada ao “canetazo”. Sem mais nem menos, sob um céu de brigadeiro, lançava mão da caneta e demitia todo o pessoal de uma agência, ou emitia decretos com frequência desenfreada, como se tudo o que saísse de sua caneta fosse lei ipso facto.
Todo esse esforço se tornou inútil e cansativo, já que os obstáculos institucionais o obrigaram a anular a maioria de seus atos. E lá vinham novos canetazos com os mesmos vícios, igualmente inúteis e cansativos. Mas o que fazer? O prazer de manusear a caneta já se tornara um vício.
Outros próceres parecem não ter o inconsciente tão à flor da pele – ou ao alcance das mãos – e usam a caneta, doutores que são das leis, no recôndito de seus gabinetes, onde escrevem e reescrevem os destinos das pessoas e das instituições. É como se a caneta lhes propiciasse uma intimidade ilimitada com ambas, pessoas e instituições, que os incita a intrometer-se onde queiram, muitas vezes sem serem chamados.
Um deles, rábula de profissão e doutor da lei por decisão presidencial, tem praticado com afinco a arte de usar a caneta para escrever por cima e reescrever o que tiver pela frente, uma pena bem carregada nas tintas. Uma de sua primeira façanhas foi a de se voluntariar para, em suas palavras, redigir inteiramente um novo rito do impeachment presidencial.
Sem mencionar o tamanho do encargo, que obrigaria a reformular desde dispositivos constitucionais, a leis, códigos legais, regimentos e normas de procedimento dos três poderes, implicaria também concentrar em uma só caneta todos os poderes exercidos pela Constituinte, o Congresso, o Supremo e o Executivo. A grita foi grande e a super caneta teve que recolher-se a sua insignificância.
Mas não as ânsias douto-legais de seu portador: o mais recente episódio foi sua intervenção sobre o processo de designação dos reitores das Universidades federais. Trata-se de um processo que envolve dispositivos constitucionais, leis que foram sendo alteradas nos últimos 60 anos, resoluções do Conselho Nacional de Educação, Leis Complementares, como a de Diretrizes e Bases da Educação, a famosa LDB, e os Estatutos e Regimentos de algumas dezenas de Universidades.
Desta vez, o conflito que levou a questão ao Supremo é simples de explicar: as universidades federais se acostumaram, ao longo de mais de uma década, a obter a nomeação do reitor por voto direto da “comunidade” de professores, estudantes e funcionários, por meio de uma “consulta”. Seu resultado é acatado pelo Conselho Universitário (a autoridade máxima da instituição, prevista em lei) que, por sua vez, forma uma lista tríplice encabeçada invariavelmente pelo vencedor da “consulta”, o qual tem sido simplesmente referendado pelo MEC e a Presidência.
Só que o ritual da lei vigente que, neste particular, vem sendo mantido apesar de mudanças feitas nos últimos 60 anos, estabelece que o reitor é designado pelo Presidente, a partir de uma lista tríplice eleita pelo órgão de máxima representação da universidade. O conflito legal é sobre a prerrogativa do Presidente para designar conforme a lei, ou sua obrigação de referendar o nome do mais votado na consulta, como deseja a “comunidade”.
Assim sendo, não haveria nada a reescrever, pois basta dizer se a lei vigente vige ou não, o que já virou um hábito no STF. E é comum quando se trata de leis que incomodam setores numerosos ou poderosos da sociedade. Getúlio já dizia – ou lhe era atribuído ter dito – “a lei, ora, a lei”. É verdade que isso era dito em períodos em que o esgarçamento do Estado de Direito era mais avançado.
Pois bem, o lado doutor-Jeckyl-da-lei, mandou cumprir a lei, que diz que uma lista tríplice deve ser enviada ao Presidente, mas seu lado escriba-Hide escreveu por cima, com tinta vermelha: o Presidente só pode designar o primeiro da lista. Para que serve, então, a lista tríplice, a não ser para reduzir a caneta presidencial a sua insignificância?
Preparem-se, os doutores da lei estão se digladiando a golpes de caneta remota, o que só agrava os conflitos e erode a proteção legal a que temos direito.