MAS A CHINA NÃO BRINCA EM SERVIÇO
Os ataques concertados entre Bolsonaro e Paulo Guedes contra a China foram deliberados. Julgando por seus efeitos, e não por suas intenções (que não são observáveis): tais ataques afetam imediatamente a disponibilidade da CoronaVac o quê, por sua vez, afeta a credibilidade do Butantan, daí à credibilidade da farmacologia chinesa e, com isso, lançam um desafio ao governo chinês. Não podem, entretanto, obrigar os chineses a reagirem segundo os desejos do (des)governo Bolsonaro.
O leque de reações possíveis do governo chinês, a desafios lançados por outros poderes, é muito amplo, podendo ir da simples desconsideração do desafio, a pesadas retaliações e ameaças militares. Mas, a meu juízo, não o obriga a morder a isca.
Qualquer pesquisador que acompanhe regularmente as relações entre Brasil e China ficaria muito surpreso se esse nosso mais importante parceiro comercial fizesse mais do que humilhar o nosso governo. Ainda menos que retaliasse, bloqueando nossa importação de fármacos ou nossas exportações agrícolas. Atrevo-me a dizer que isso não vai acontecer.
Enquanto o risco de indisponibilidade dos insumos chineses afeta imediatamente a credibilidade do Butantan para cumprir seus compromissos, a reação do governo chinês ao suposto desafio de Bolsonaro depende apenas da escolha do governo chinês. Entretanto, o efeito sobre a credibilidade do Butantan afeta diretamente a imagem da farmacologia chinesa e, particularmente, a maneira como a comunidade internacional avalia o respeito de Xi Jinping a compromissos comerciais. Não esqueçamos que a República Popular Chinesa está empenhada em consolidar seu soft power, especialmente no que diz respeito ao que tem sido chamado de geopolítica da vacina. Ser visto pela comunidade internacional – seus parceiros comerciais – como um país que descumpre seus compromissos é tudo de que a China não precisa.
Por isso, é razoável supor que os chineses não têm interesse em inviabilizar a produção de CoronaVac pelo Butantan, precisam apenas de um bom pretexto para suspender a retaliação hora em curso, sem tampouco perder a face. Os chineses precisam tomar conhecimento de que esse tipo de retaliação – opor obstáculos à entrega dos insumos – embora geralmente eficaz, é precisamente o que Bolsonaro espera, reforça sua relação com seus mais fiéis seguidores. E mais, ajuda a mitigar a queda persistente de sua aprovação e, consequentemente, aumenta sua chance de chegar ao segundo turno das eleições presidenciais de 2022, pois além de agir com sua rudeza característica, desacredita futuros competidores que geralmente se inclinam a encarar a China como parceiro comercial indispensável.
Esse papel esclarecedor não pode ser esperado do Itamaraty nem dos setores mais razoáveis do atual governo. Caberia, ao contrário, à sociedade civil e a setores da classe política não comprometidos com o bolsonarismo. Mas seria necessário uma abordagem de peito aberto com o governo chinês, sem punhos de renda. Uma abordagem obsequiosa e de apelo aos sentimentos de fraternidade não levaria a lugar nenhum.